Líderes do G 20 vencidos com táticas de “Divide e vencerás”: A história atrás do triunfo de Washington em Genebra

Por Walden Bello e Aileen Kwa*

 

O documento marco de julho é um grande triunfo para os superpotências comerciais, especialmente para os Estados Unidos. Quanto ao mundo em desenvolvimento, a situação é mais complexa, a maioria dos países sai perdendo mais alguns outros asseguram que ganharam alguma coisa. Entre os poucos que asseguram estar no grupo dos ganhadores está o Brasil e a Índia, os quais são os líderes reconhecidos do G 20 e dois das parceiros importantes (FIPS) que jogaram um papel de liderança na redação do texto agrícola.

 

É necessário prestar atenção à dinâmica das negociações do marco de julho já que foram diferentes das tradicionais negociações comerciais Norte-Sul e talvez estabeleçam novas regras no futuro.

 

A Substituição pelo Conselho Geral

 

Institucionalmente, uma das inovações é que o Conselho Geral tornou-se de fato a instituição suprema na tomada de decisões da OMC. O que a reunião de julho produziu na realidade foi uma uma declaração ministerial sem uma reunião ministerial. Dois fracassos ministeriais (Seattle e Cancún) colocaram em evidência ao secretariado da OMC e aos superpotências comerciais a inconveniência do ministerial como um foro de tomada de decisões. Isto gerou protestos populares e das o­nGs. Atraiu ministros, muitos dos quais não eram negociadores profissionais mas políticos decididos a lutar pelos interesses de seus países. Atraiu a imprensa em grande quantidade e fez com que a tomada de decisões fossem mais transparentes apesar dos desejos dos negociadores acostumados às exclusivas “Salas Verdes”.

 

Somente uns 40 ministros do Comércio compareceram a Genebra para a reunião do Conselho Geral de Julho, com a ausência de muitos representantes de países que jogaram um papel chave na reunião ministerial de Cancún, como a Quênia e a Nigéria. Obviamente, com a ausência de uns 100 ministros dos países membros da OMC, um grande número de países não perceberam a importância da reunião.

 

Quanto à sociedade civil mundial, que jogou um papel decisivo nos resultados de Cancún, foi, na sua maioria, complacente, e falharam em perceber a rapidez com que os potências comerciais podem se levantar de seu estado de confusão. Muito poucas o­nGs levaram pessoas a Genebra durante os críticos dias de julho.

 

A Lida com o G 20

 

Porém, este não foi simplesmente o comportamento de manipulação das superpotências comerciais e do secretariado da OMC do período anterior a Cancún. A situação posterior fez como que isso fosse impossível. Cancún marcou o surgimento do G 20 como um jogador chave nas negociações comerciais. Como o embaixador Clodualdo Huguenuy do Brasil o colocou durante o debate do Foro Social Mundial em Mumbai em janeiro passado, “O G 20 quebrou o monopólio da UE e dos EUA sobre a negociações comerciais.”

 

Os EUA, porém, não conseguiram apreciar a mudança de situação imediatamente. À saída da encontro de Cancún, o responsável do Comércio Americano, Robert Zoellick mostrou um enfoque nas negociações comerciais mais agressivo e unilateral quando disse que os Estados Unidos insistiria no fechamento de acordos bilaterais com países acessíveis, insinuando que faria menos esforço nas negociações dentro da OMC. Washington também lançou um ataque direto ao G 20 ao separar com sucesso El Salvador, a Colômbia, o Peru, a Costa Rica e a Guatemala do bloco em algumas semanas.

Quanto aos outros países em desenvolvimento, o G 20 foi um fenômeno visto como positivo. Porém, houve apeensão entre eles pelo fato de os membros mais influentes de G 20 serem agroexportadores como o Brasil e que o principal objetivo do grupo era acabar com os sistemas de enormes subsídios da UE e dos EUA e derrubar as barreiras contra o acesso aos mercados destes prósperos países. Muitos países, inclusive a Indonésia, estavam preocupados de que os governos do G 20 estivessem muito menos interessados em proteger os mercados dos países em desenvolvimento e a agricultura de porte pequeno das importações a baixo custo. Portanto, o G 33 continuou a fazer propostas sobre a proteção de “produtos especiais” e “mecanismos de salvaguarda especiais.”

Outros países acharam que a concentração do G 20 na agricultura era uma estratégia inadequada para defender os interesses dos países em desenvolvimento. Isto levou à criação do G 90 (formado pelo Grupo África, o ACP [Países da África, do Caribe e do Pacífico] e os Países Menos Desenvolvidos) , que se juntaram para bloquear os “Novos Assuntos” de investimento e facilitação comercial para que não passasse a ser jurisdição da OMC.

Porém, o bloco G 20 deu um impulso ao grupo dos países em desenvolvimento e muitos governos sentiram-se inspirados pela promessa do Ministro das Relações Exteriores do Brasil no seu discurso em Cancún que o objetivo do G 20 era aproximar mais (o sistema de comércio mundial) às necessidades e aspirações daqueles que estão nas suas margens – de fato, a grande maioria – aqueles que não tiveram ainda a chance de colher o fruto de seu trabalho. Está na hora de mudar esta realidade.”

Para a primavera de 2004, porém, a estratégia dual de Washington – procurar acordos bilaterais e destruir o G 20 – estava indo águas para baixo. A Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) não conseguiu se materializar no encontro ministerial em Miami em Novembro de 2003, e deram-se conta que os acordos bilaterais podiam complementar mas nunca substituir um marco de livre comércio abrangente e multilateral para promover os interesses comerciais das empresas. Enquanto isso, o G 20, apesar das deserções iniciais, manteve-se firme.

Troca de Marchas

Para reiniciar a OMC, Washington, trabalhando em conjunto com Bruxelas trocou marchas. Em vez de tentar destruir o socavar o G 20, eles fizeram dos líderes, o Brasil e a Índia, parceiros chave das negociações sobre agricultura, que era a barreira principal para qualquer tipo de avance à liberalização. Assim, formou-se em avril o grupo informal chamado os Cinco Parceiros Importantes (FIPS), formado pelos EUA, a UE, a Austrália, o Brasil e a Índia. Foi que, consultando de perto com este grupo, o Chefe do Comitê de Agricultura da OMC, Tim Groser, produziu o texto agrícola proposto no marco de julho.

Uma mudança na estratégia também foi evidente a respeito de outros países e organizações. Na primavera, o representante do governo americano, Zoellick, começou a visitar alguns países em desenvolvimento estrategicamente importantes. Em vez de recusar os convites à reunião do G 90 em Maurício em meados de julho, a UE e os EUA enviaram delegados de alto nível, entre eles Zoellick. Lá, a linguagem de confrontação cedeu passo a esforços retóricos para fazer que os países em desenvolvimento não só chegassem a um acordo na agricultura mas também para pôr em andamento as conversas sobre a redução das tarifas não agrícolas.e sobre a facilitação comercial e as negociações sobre serviços. Mas talvez a mensagem mais clara ouvida pelos países em desenvolvimento por parte das suporpotências comerciais foi que essa era a última oportunidade para pôr em funcionamento o sistema multilateral – insinuando que eles seriam os culpados se as conversações no Conselho Geral do final de julho não dessem certo.

O impulso dos EUA e da UE para reiniciar a OMC foi muito bem-sucedido.Os EUA e a UE foram os principais ganhadores do acordo para reduzir tarifas não agrícolas, com as taxas das tarifas mais altas sofrendo os maiores cortes; na verdade, Zoellick voltou para os EUA anunciando com banda e fanfarra que o acordo sobre o acesso dos produtos não agrícolas aos mercados (NAMA) era uma grande vitória para as empresas americanas, já que só era o começo de um processo que reduziria as tarifas dos produtos industriais e das manufaturas a zero. Ambos a UE e os EUA marcaram uma vitória fazendo com que os países em desenvolvimento concordaram em começar as conversações sobre facilitação comercial, um dos “novos assuntos” que os países em desenvolvimento rejeitaram em Cancún. Mas foram os EUA que saíram campeões, conseguindo além do anteriormente mencionado, uma “Caixa Azul” ampliada na qual colocar uma porção significativa dos subsídios paras seus agricultores legislada na Lei Agrícola Americana de 2002.

Parte do sucesso de Washington reside na astuta estratégia de negociação. Por exemplo, para conseguir sua nova Caixa Azul ampliada, Washington distraiu a atenção dos países em desenvolvimento exigindo que estes reduzissem seus apoios nacionais de minimis, ou seja, a taxa permitida de subsidiação de sua produção. Na defensiva, estes países gastaram muita energia justificando seus subsídios, então ficaram aliviados quando os EUA recuaram para chegar a um acordo no assunto em troca da aceitação da ampliação da Caixa Azul. Do mesmo jeito, pouco antes da reunião do Conselho Geral os EUA de repente introduziram a categoria de “produtos sensíveis” para proteger uns 20-40 por cento de seus produtos de importantes reduções tarifárias. Preocupados com a possibilidade de que a UE colocasse obstáculos para seu pedido para produtos especiais protegidos, que são fundamentais para a seguranza alimentar, os negociadores dos países em desenvolvimento assentiram.

A Neutralização do Brasil e da Índia

Mas a chave da estratégia ganhadora dos EUA foi convidar o Brasil e a Índia a fazer parte do grupo central das negociações e depois foi aceitar os principais pedidos deles para separá-los do resto dos países em desenvolvimento. A preocupação principal da Índia era evitar a chamada “Fórmula Suíça”, para reduzir tarifas que requereria baixar suas tarifas agrícolas significativamente, e que era também compartilhado com a União Européia. Segundo um negociador de um país em desenvolvimento, o principal objetivo da Índia na reunião do Conselho Geral era a proteção de suas tarifas e não ia insistir muito no assunto da eliminação dos subsídios agrícolas para não pôr em risco o apoio da UE na sua posição sobre as tarifas. (A posição do governo indiano foi frustrada por sua aliança informal com a UE a respeito do assunto das tarifas após a reunião ministerial de Doha antes de a UE abandonar os índios para se alinhar com os EUA no período que levou a Cancún. Ambos a UE e a Índia estavam satisfeitos com o enfoque da Rodada Uruguai sobre a redução de tarifas já que eles estimavam que o nível das tarifas promédio fosse suficientemente alto como para suportar outra rodada com esse tipo de reduções. Havia países, porém, com promédios tarifários muito mais baixos para quem até um enfoque da Rodada Uruguai seria drástico demais [por exemplo: Honduras, Sri Lanka, Indonésia].)

Por outro lado, a preocupação do Brasil era eliminar os subsídios agrícolas e o consiguiu. O texto final assegurava o gradativa desaparição dos subsídios à exportação e também de algumas categorias de créditos à exportação. O grande ganhador com a eliminação gradativa de subsídios deverá ser o Brasil, com ganhos estimados de uns $10 bilhões de dólares. Segundo Amorim, a decisão de julho marcou o “começo do fim” para os subsídios à exportação. Porém, os ganhos do Brasil não são certos a não ser que sejam assegurados pelas modalidades das negociações. Um prazo específico de finalização para a eliminação dos subsídios à exportação só será anexada na próxima fase de discussões. Além disso, mesmo quando suposadamente a eliminação tenha acontecido, a UE depois de tudo tem sido conhecida por substituir os subsídios à exportação com subsídios à exportação indiretos através de pagamentos diretos a agricultores sob a Caixa Verde. Esta também é a intenção da atual reforma da Política Agrícola Comum (CAP). Ademais os parâmetros das negociações deixam sem modificações a Caixa Verde, que contém até 70 por cento do total dos subsídios dos EUA. Até os analistas mais otimistas não podem dizer com certeza se os níveis finais de apoio dos dois gigantes agrícolas serão reduzidos. De fato, é previsto que os níveis de subsídio sejam mantidos ou até aumentados.

Apesar disso, por enquanto, o negócio agrícola brasileiro, está muito contente. Na verdade, foi a pressão desse negócio agrícola brasileiro que suposadamente obrigou a Celso Amorim segurar com força o assunto do subsídio em detrimento de uma forte defensa dos interesses em outras áreas dos países em desenvolvimento. Não tendo ganho nada nas negociações fracassadas no ALCA e no pacto UE-Mercosul, os agroexportadores brasileiros estavam ávidos por um bem-sucedido acordo na OMC que possibilitasse aumentar suas exportações para a UE e os EUA.

Entre aqueles que ficaram com desvantagem ao colocarem a Índia e o Brasil seus interesses específicos estavam:

–         a maioria dos países em desenvolvimento que encontrarão que seus mercados continuarão a ser invadidos por produtos subsidiados dos EUA e da UE. Para o Sul em conjunto, perdeu-se a oportunidade de corrigir as distorções no comércio agrícola legitimadas na Rodada Uruguai;

–         os países africanos produtores de algodão que fracassaram em colocar as negociações dos subsídios ao algodão americano numa “trilha rápida” independente das negociações agrícolas ou sequer um compromisso de que todos os subsídios ao algodão serão eliminados;

–         o G 33, que ficou somente com nada mais do que um vago compromisso de que seu pedido de “Produtos Especiais” e o “Mecanismo de Salvaguarda Especial” e especialmente, a cobertura dos produtos sob esse mecanismo seria assunto de negociações;

–         a maioria dos países em desenvolvimento, que legitimamente se opuseram ao texto sobre acesso ao mercado de produtos não agrícolas como uma receita para sua desindustrialização. Na verdade, os EUA marcaram uma grande vitória para o NAMA já que o texto é uma agenda detalhada para a liberalização radical que as empresas transnacionais têm aguardado por muito tempo. Como o exprimiu a Associação Nacional de Fabricantes Americanos, “Este é um grande sucesso e uma grande vitória para a OMC, para os EUA e para a economia mundial. O sucesso realmente grande para as negociações industriais é que todos os países aceitaram o princípio das profundas reduções tarifárias e a eliminação das tarifas sectoriais.”

–         a maioria dos países em desenvolvimento, que agora acordaram acelerar sua oferta de serviços para a liberalização.

Dilema

Não é que a Índia e o Brasil não fossem sensíveis aos pedidos dos outros países em desenvolvimento. De fato, eles consultaram aos diferentes grupos de países em desenvolvimento. Foi simplesmente que ao se tornarem peças chave na elaboração dos parâmetros propostos, ficaram numa encruzilhada. E quanto mais os interesses da reunião começaram a divergir da estratégia de promover os interesses da maioria dos países em desenvolvimento, mais forte eles anunciavam que o documento marco de julho era uma vitória para o Sul. É uma testemunha para o prestígio da Índia e do Brasil entre outros países no Sul que até hoje, muitos países em desenvolvimento não se dão conta do mal que se saíram em Genebra.

As superpotências comerciais aprenderam da debacle em Cancún. A mudança de uma estratégia de confrontação para uma de cooptação e de sutil “divide e vencerás” foi capaz de quebrar a superficial “unidade do Terceiro Mundo” que surgiu em Cancún. A peça principal da estratégia foi atrair os líderes do G 20, a Índia e o Brasil para o centro das negociações e jogar com seus interesses específicos. Eles caíram na cilada. Além disso, ao se tornarem peças centrais como membros do exclusivo grupo Cinco Parceiros Importantes, viu-se limitada sua capacidade para rejeitar grandes partes do texto ao qual tinham sido consultados com anterioridade a sua apresentação perante o Conselho Geral. Isso teria sido o motivo para ser responsáveis pelo fracasso da Rodada Doha e do sistema de comércio multilateral.

Durante e depois de Cancún, o G 20 foi visto em alguns círculos como representante da principal mudança de poder na ordem de comércio mundial. Alguns até consideraram o G 20 como o dínamo para uma “Nova Ordem Econômica Internacional.” A realidade é que o G 20 e especialmente o Brasil e a Índia passaram a pertencer ao grupo de potências comerciais mundiais chave, mas fica cada vez mais claro que o preço para isso tem sido o enfraquecimento do poder de negociação do Sul.

Mais do que nunca, o Sul precisa de uma liderança que tenha vontade de correr riscos por todos e evitar cair na tentação de aceitar um acordo em troca de pequenos e talvez ilusórios ganhos para um dos países. Muitos tinham esperado que os líderes do G 20 jogassem este papel. No primeiro encontro pós-Cancún, estes últimos não conseguiram cumprir com as expectativas.

 

*Diretor Executivo e Pesquisadora Membro, respectivamente, do Bangkok-based Focus o­n the Global South